terça-feira, 22 de junho de 2010

461. Jornal i entrevista Orlando Monteiro da Silva (Parte 1: A entrevista)

Hoje com 47 anos, Orlando Monteiro da Silva foi o bastonário mais novo de sempre no país. Está desde 2001 à frente da Ordem dos Médicos Dentistas, área que entrou tarde no comboio na saúde, mas - diz - de forma inteligente. Vai propor num encontro das Ordens de saúde esta quarta-feira em Lisboa que se altere a Constituição: o Serviço Nacional de Saúde não pode ser tendencialmente gratuito, como está escrito, e a auto-responsabilização dos doentes é essencial. Reduzir os numerus clausus das faculdades de Medicina Dentária é outro objectivo. Mas também há seguros e convenções como a ADSE a estrangular a classe.
Jornal i - Como vê as medidas para reduzir a despesa do SNS?
Orlando Monteiro da Silva - Tenho chamado ao SNS uma espécie de comboio, onde a medicina dentária não entrou senão muito recentemente, que se aproxima de um precipício se nada for feito, nomeadamente em termos de financiamento. São medidas simbólicas, num contexto político em que há uma pressão grande para que se faça alguma coisa, mas não vão mudar nada de substancial.
Jornal i - Tem alguma proposta?
Orlando Monteiro da Silva - É preciso rever a Constituição no que respeita ao SNS. O artigo 64º, que fala sobre ele, deve ser o mais resumido possível, sem a alusão a um SNS tendencialmente gratuito. É fundamental que haja um grau de participação económica na utilização dos serviços de saúde.
Jornal i - Mas essa participação existe...
Orlando Monteiro da Silva - Existiu. Foram dados sinais contraditórios, de certa forma até eleitoralistas. Tínhamos taxas moderadoras simbólicas, foram aumentadas e depois foram abolidas. Convém ter em linha de conta que cerca de 50% dos utentes já estavam isentos. A Constituição deve ter um princípio geral sobre o SNS, mas o seu modus operandi não pode estar limitado. Diz por exemplo que o SNS tem gestão descentralizada e participada, quando é tudo menos isto. É centralizado e as decisões são tomadas por um pequeno grupo de pessoas.
Jornal i - Vê outras lacunas?
Orlando Monteiro da Silva - A área da saúde não vive isolada. É preciso uma melhor articulação para reorientar o SNS para a prevenção. Outra noção antipática, provavelmente, é a de auto-responsabilização.
Jornal i - Antipática porquê?
Orlando Monteiro da Silva - É uma noção estranha à maioria da população. O primeiro e último responsável pela saúde é o próprio. É o principal responsável e o principal interessado.
Jornal i - Isso não tem acontecido?
Orlando Monteiro da Silva - Não. Todos os dias vemos uma projecção para os serviços de saúde da resolução de problemas provocados por atitudes ou a falta delas, por decisões que se foram tomando ao longo da vida. É preciso ajudar as pessoas a tomarem as melhores decisões pela sua saúde.
Jornal i - Disse em tempos que o Ministério tratava os portugueses como se não tivessem boca. Mantém esta opinião?
Orlando Monteiro da Silva - Foram dados passos positivos. Nós não apanhámos o comboio do SNS, mas a nossa forma de entrar foi mais inteligente e sobrecarrega menos a sociedade. Com o programa do cheque-dentista foram contratados alguns serviços básicos, para alguns grupos da população, o que é uma lógica de outsourcing muito seguida no SNS inglês. O Estado não tem de prestar cuidados de saúde mas zelar que estes são prestados, regulados e financiados.
Jornal i - Os tratamentos são iguais para quem chega com o cheque-dentista?
Orlando Monteiro da Silva - É essa a nossa ética. O investimento em tratar bem uma criança é uma oportunidade de fidelizar doentes/clientes.
Jornal i - Mas há queixas de que essa diferença existe com os seguros de saúde...
Orlando Monteiro da Silva - A Ordem está proibida de ter tabelas de valores mínimos ou máximos em termos honorários. A intervenção no cheque-dentista foi diferente, por ser um programa social que pressupõe o envolvimento social dos médicos. Lembro-me da conversa com o professor Correia de Campos sobre o montante dos cheques: sugeri 80 euros, ele, 35 euros e o valor final foi de 40 euros. No que diz respeito às seguradoras, os contratos/convenções são uma decisão individual, cada médico aceita ou não trabalhar mediante as condições colocadas.
Jornal i - Houve alguma sensibilização?
Orlando Monteiro da Silva - Já o fizemos. Só há uma coisa que sensibiliza as seguradoras - o dinheiro -, o que não deixa de ser legítimo. Isto obedece a uma lógica de mercado: as seguradoras aproveitam-se do número de médicos-dentistas para unilateralmente imporem as suas tarifas. Dão-se ao luxo até de baixar as tabelas dos valores que propõem. Chega a haver tratamentos ou intervenções propostos a custo zero. Aqui temos uma denúncia de dumping há cerca de um ano e estamos à espera. Mas isto são situações do foro privado, entre o médico dentista e a convenção ou a seguradora. Situação bem diferente é ADSE, que não actualiza os valores nas suas tabelas há 19 anos.
Jornal i - São muito baixos?
Orlando Monteiro da Silva - O valor de uma extracção dentária ronda os 10 euros, o que não paga sequer os materiais envolvidos. É completamente inaceitável e uma situação de concorrência desleal. Mas há mais: uma seguradora tem direito de fazer contratos, enquanto a ADSE deve funcionar com concursos. Um médico dentista que queira fazer contrato com a ADSE não pode, pois há mais de dez anos que a convenção está fechada. Mas se um grande grupo económico abrir uma clínica aparece logo com todas essas convenções. Não há uma regulação eficaz em Portugal.
Jornal i - O que pensa da corrida às clínicas das faculdades?
Orlando Monteiro da Silva - A função das faculdades não é competir com o mercado de saúde, mas é importante que esses serviços existam para formação dos alunos.
Jornal i - Mas também há médicos a dar consultas nas faculdades.
Orlando Monteiro da Silva - Só se estiverem inseridos em pós--graduações.
Jornal i - É isso que acontece na prática? Só em Lisboa e no Porto as faculdades dão mais de 70 mil consultas por ano.
Orlando Monteiro da Silva - Não tenho dados sobre a matéria, mas acho que há uma tentação crescente para isso, por via do estrangulamento do financiamento. Querer fazer das faculdades hipermercados de tratamentos de medicina dentária é um erro profundo. Mas o meu repto principal para as faculdades é que estão a ser uma de fábrica de médicos dentistas.
Jornal i - Vão intervir?
Orlando Monteiro da Silva - Temos uma petição aprovada e em Junho vamos começar a recolher assinaturas para levá-la a discussão em sede de comissão e plenário no início do próximo ano. O objectivo é mudar alguns aspectos da lei para adequar as entradas nas faculdades às necessidades do país. Temos cerca de 500 alunos formados por ano, número que tem aumentado com o processo de Bolonha. Os médicos dentistas têm uma média de idade de 37 anos e sabemos que não haverá gente a reformar-se nos próximos 4/5 anos. Calculo que este número tenha de ser diminuído gradualmente 10%/ano, até chegar a metade.
Jornal i - Vão propor a extinção de algum curso?
Orlando Monteiro da Silva - Não, embora sete faculdades seja excessivo. O Reino Unido, com mais de 50 milhões, de habitantes têm 9 faculdades.
Jornal i - Quais são as perspectivas destes jovens médicos dentistas?
Orlando Monteiro da Silva - Grande parte é forçada a sair do país. A sociedade portuguesa não precisa de mais médicos dentistas, e estamos a assistir a uma fuga de cérebros depois de uma formação cara. Muitos deles nunca voltam e isso constitui um prejuízo enorme se pensarmos que esta formação rondava, há uns anos, os 100 mil euros.
Jornal i - O número de médicos a saírem do país está a aumentar?
Orlando Monteiro da Silva - No Reino Unido são perto de 440. Para os outros países da Europa não temos números.
Jornal i - Pensando no Reino Unido, o que é que têm cá e o que vão ter lá?
Orlando Monteiro da Silva - Cá têm um futuro incerto, uma dificuldade enorme de inserção no mercado, uma rede de mais de 5000 clínicas e consultórios em que abrir mais um é praticamente um suicídio. Sobretudo o número de doentes que atendem é muito baixo. Há colegas nossos que estão no consultório o dia todo à espera de um doente, que pode aparecer ou não. A diferença é que eles chegam a Inglaterra a ganhar sete ou oito mil libras por mês.
Jornal i - Recém-licenciados?
Orlando Monteiro da Silva - Sim. E isso em Portugal nem um sénior. Mas não é solução propor aos jovens que saiam do país.
Jornal i - Mas como se compete com um salário de 8000 libras?
Orlando Monteiro da Silva - Sair do país é um direito, mas há alguma coisa a dizer sobre a política de formação de recursos humanos. Se não houver um acesso crescente da população à medicina dentária, se não houver um crescimento económico do país, se não houver produtos/seguros com qualidade, grande parte destas pessoas não vão ter futuro na medicina dentária.
Jornal i - Há exercício clandestino?
Orlando Monteiro da Silva - Há muito exercício ilegal em Portugal, com redes clandestinas de recrutamento. Com o Brasil é muito frequente. Há colegas que conhecem outros, vêm para cá três/quatro meses fazer umas consultas, depois voltam para lá.
Jornal i - Como passam receitas?
Orlando Monteiro da Silva - No nome de colegas legais que os encobrem. Daí a importância da nova lei do licenciamento: até ao próximo ano todos os consultórios vão ter de pedir licença. E haverá inspecções periódicas.
Jornal i - Qual é a dimensão do problema?
Orlando Monteiro da Silva - Temos ideia das queixas, mas não há ideia do que representa pois só com uma fiscalização eficaz é que seria possível.
Jornal i - É o primeiro português eleito presidente na Federação Dentária Internacional. Sente-se a representar Portugal?
Orlando Monteiro da Silva - Sinto que é bom para o país. A minha voz na Ordem fica mais ampliada pelo facto de ser presidente eleito da FDI, mas nas minhas funções do dia-a-dia embora tente focar a realidade portuguesa, não é isso que se espera. Não fui eleito por ser português, nem por ser bastonário.
Jornal i - Mas se desse um bom exemplo português, qual seria?
Orlando Monteiro da Silva - A qualidade dos médicos dentistas, a prática privada e o programa cheque-dentista. A experiência do cheque-dentista, embora limitada, tem sido acompanhada com bastante interesse em termos internacionais. Não se julgue que só em Portugal é que a saúde oral é negligenciada. Neste momento seria muito penalizante se alguém quisesse acabar com o programa.
Jornal i - Já ouviu falar nisso?
Orlando Monteiro da Silva - Já ouvi dizer que o corte no SNS podia incluir o cheque-dentista.
Jornal i - A quem?
Orlando Monteiro da Silva - Sobretudo comentadores, outsiders. Primeiro porque o que se gasta com o programa - 30 milhões de euros - face ao benefício que dá a milhares de pessoas, é irrelevante. Depois porque não há mais nada, e há muito por onde cortar. O grande problema do cheque-dentista é a expectativa que está a criar na população não abrangida. Isto é que, imagino, se pode tornar difícil de gerir...
Jornal i - Não há inveja nos médicos das outras especialidades?
Orlando Monteiro da Silva - Estou convencido que este programa vai ser alargado a outras áreas. Oftalmologia, otorrinolaringologia... É importante ver que este programa nasce por vontade política mas também por consciência de que por fim é uma área valorizada. Mais de metade da população não tem nenhum dente na boca. Lembro-me de há uns anos faltarem-lhe dois dentes a uma miss de Portugal, o que é impensável.
(Continua)

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