terça-feira, 22 de março de 2022

741. MIGUEL PAVÃO: "A saúde oral está a ser permanentemente adiada"


Em entrevista, Miguel Pavão, bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, aponta algumas reformas necessárias em termos de saúde oral. É o caso da reformulação do cheque-dentista e a necessidade de uma efetiva integração de profissionais no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Que retrato faz da saúde oral em Portugal?

A saúde oral é algo que está a ser permanentemente adiado por aquilo que foram as vicissitudes históricas de não ter sido integrada na criação do SNS. Foi um erro à nascença, que dificilmente se corrigiu e inverteu. E ficou eternamente adiado, porque só em 2008 é que houve a tentativa de implementação de um projeto, que é o cheque-dentista, em que se deram alguns passos. Mas havia uma ambição de o projeto evoluir e que acabou por não acontecer. Simultaneamente, houve tentativas desorganizadas e sem estratégia de integrar médicos dentistas no SNS. Aconteceu o ridículo de haver ARS [administrações regionais de saúde] que montaram consultórios médico-dentários e nunca tiveram uma consulta de medicina dentária. Depois, houve um pequeno salto em 2017, com a criação do projeto Saúde Oral para Todos, da autoria do ministro Adalberto Campos Fernandes e do secretário de Estado Fernando Araújo, que, diria, foi quem realmente pegou nesta causa e a alicerçou, mas que acabou por não conseguir concluir o processo porque houve uma reforma governamental. Com a entrada da ministra Marta Temido, o processo ficou estagnado, e depois entrou uma pandemia, que serviu sempre como desculpa. Se houve uma evolução na saúde oral dos portugueses, deve-se aos profissionais do setor privado.

A falta de investimento em saúde oral no SNS cria desigualdades no acesso aos cuidados?

À data de hoje, e segundo os dados do nosso barómetro, uma grande parte da população continua a não visitar o médico dentista e a não aceder aos consultórios de medicina dentária. Cerca de 41% dos portugueses não visitaram o médico dentista em 2021. Significa que há uma fasquia da população, que é muito coincidente com indicadores socioeconómicos de pobreza, que continua a não aceder aos consultórios médico-dentários. O que acontece é uma bipolaridade no acesso aos cuidados. Quem tem capacidade económica investe. Por outro lado, temos uma faixa da população que, por falta de capacidade económica, nível cultural e literacia, não tem essa possibilidade.

Quase 2,4 milhões de cheques-dentista foram desperdiçados. O projeto deve ser repensado?

Completamente. Deu-se um salto importante [com a criação do cheque], mas a verdade é que o projeto não evoluiu. Aliás, só retrocedeu. Não nos podemos esquecer de que, depois da introdução da troika, houve uma redução do valor, que nunca mais foi atualizado. Os cheques-dentista têm perdido em toda a linha. Não tem havido auditorias, não tem havido ambição no projeto e a Ordem dos Médicos Dentistas, neste momento, sente-se bastante incapaz por não ter interlocutores, quer no Ministério da Saúde quer na Direção-Geral da Saúde, que digam "vamos trabalhar sobre este dossiê". Essa é uma das fragilidades que temos vindo a apontar. Apresentei uma proposta à senhora ministra da Saúde, antes da queda do governo, para a criação de um grupo de trabalho para uma reflexão estratégica sobre várias dimensões da saúde oral. Mas até à data não obtivemos resposta.

Uma nova agenda para a saúde oral no pós-pandemia

A próxima legislatura será marcada por estabilidade política e verbas do PRR. Quais devem ser as prioridades na saúde oral?
Uma das prioridades é a integração dos médicos dentistas no SNS e a reforma dos cuidados de saúde primários para a saúde oral, onde a criação de unidades de saúde oral tem de ser também formatada. Temos também a vertente do cheque-dentista e do programa de saúde oral. E temos uma terceira dimensão, que não pode ser descurada, que tem a ver com a preparação e planeamento dos profissionais que estão ligados à saúde oral. Formamos médicos dentistas a mais, temos higienistas a menos.

Em 10 anos, houve um aumento de 70% no número de médicos dentistas. Defende a redução de vagas nas universidades?

Claro que sim. Não é por estarmos a aumentar o número de médicos dentistas que a população está a ter mais acesso a cuidados de saúde oral. Faltam é políticas verdadeiramente programadas para conseguir dar equidade no acesso aos cuidados médico-dentários. A Organização Mundial da Saúde lançou, em 2021, uma resolução que vai influenciar até 2030 uma tentativa de que os Estados-membros possam realmente adaptar os profissionais de saúde para uma intervenção mais preventiva. Sob o nosso ponto de vista, tem de haver um planeamento e uma visão estratégica de medidas, em que temos que reduzir o número de vagas de médicos dentistas nas escolas médicas e médico-dentárias e dar preparação, para que exista formação e capacitação de outras vertentes, como é o caso de intervenção mais comunitária e preventiva.

Jornal de Notícias