A maioria dos médicos dentistas com convenções com a ADSE (o sistema de segurança social dos funcionários públicos) recorrem a estratagemas ilegais para compensar os valores "obscenos" que lhes são pagos pelos seus serviços. A denúncia é de Jorge Crespo, médico dentista em Vila Real, que tem o seu caso em tribunal e garante que 90% dos colegas recorrem àquilo que na classe se chama de "compensações" (ver caixa).
O bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), Orlando Monteiro da Silva, confirmou, ao JN, ter conhecimento de alguns casos, só podendo, no entanto, remeter para as instâncias competentes aqueles que lhes chegam por via oficial. E garante que a direcção da ADSE "sabe do que se passa, mas só actua em situações visíveis", como já o reconheceu em reuniões com a OMD.
Lamentando a existência de ilegalidades, Orlando Monteiro responsabiliza a própria ADSE. "Apresentam-nos tabelas de pagamento morais, que não são actualizadas desde 1991", diz, apontando o exemplo do valor que os médicos dentistas convencionados recebem por uma consulta: 4,99 euros pagos pela ADSE e 2,49 euros pagos pelo utente, ou seja, 7,48 euros, isto quando, segundo um estudo elaborado pela Universidade Católica, o valor médio do custo de uma consulta sem tratamento é de 34,50 euros (ver caixa). "É ridículo, não chega sequer para pagar os materiais", classifica o bastonário, alertando para o facto de estar em causa a "qualidade", quer em termos de materiais usados, quer de tempo dedicado. "Isto potencia as ilegalidades".
A OMD já tentou renegociar os valores das tabelas e propôs até a sua eliminação, em troca de um regime livre de comparticipação em que o utente pagaria a totalidade ao médico dentista e seria depois reembolsado pela ADSE. Além de possibilitar a escolha do médico, permitiria um controlo do tratamento que é feito: o doente pagaria apenas o que lhe é feito de facto. "Não recebemos resposta, sequer", diz o bastonário.
O JN também não conseguiu, apesar de 15 dias de tentativas, qualquer comentário da parte do director-geral da ADSE. "Seria impopular acabar com as convenções perante o funcionalismo público, porque obrigaria as pessoas a adiantar o dinheiro", arrisca-se a analisar o bastonário da OMD, garantindo que a situação se alarga a outros ramos da medicina.
Questionado sobre o porquê de os médicos dentistas manterem convenções que lhes são prejudiciais, Orlando Monteiro aponta o dedo à saturação do mercado de trabalho. "Temos quase cinco mil médicos dentistas em Portugal e sete faculdades. É um número excessivo para o país". Equivale a um médico dentista para menos de 2500 habitantes, num país em que a medicina dentária é toda ela privada e à qual, por tal, 40% da população não tem acesso. A grande maioria dos profissionais tem menos de 35 anos, foram formados desde 1995 e trabalham em consultórios partilhados, sendo 41% deles trabalhadores dependentes.
"Já há muitas situações de subemprego e mesmo desemprego", adianta o bastonário da OMD, sendo preferível trabalhar a perder dinheiro. "Sem carreira no Serviço Nacional de Saúde (SNS), aceitam trabalhar para quem tem convenções, ao preço que calha", completa Jorge Crespo.
E se a ADSE não abre vagas para convenções há mais de dez anos (o que faz com que muitos médicos dentistas trabalhem para a ADSE com fichas de outros profissionais, ilegalmente), outra fonte de emprego é encontrada nos contratos com seguros de saúde oral. Aí, adianta a OMD, há parte dos actos que são feitos "gratuitamente". Aceita-se "porque sempre são clientes que se vão tendo e podem trazer outros..."
A OMD aponta ainda violação da concorrência fruto da aplicação das tabelas da ADSE, questão que conta, aliás, colocar nas instâncias europeias.
Orlando Monteiro resume o quadro como pantanoso. E acredita que se resolveria com a racionalização da formação e com a abertura do Serviço Nacional de Saúde à medicina dentária. Quer "nos 143 consultórios fixos ou móveis que existem" no SNS, quer através de convenções.
Preocupações de que espera dar mais uma vez conta dele ao Ministério da Saúde no decurso do seu congresso anual que hoje arranca no Europarque da Feira. Onde aproveitará a presença do presidente da Entidade Reguladora da Saúde.
Jorge Crespo é médico dentista em Vila Real e tinha um contrato com a ADSE até ser alvo de um processo, no qual diz estar inocente. Acusa ex-colegas de usar as fichas da convenção em seu nome. Desgostado, resolveu contar como se "compensa" o baixo valor do pagamento das convenções (que representam uma média de 50% dos doentes de cada dentista). "Facturam-se extracções de dentes a crianças que já os perderam, tratamentos que nunca existiram, ou que já foram cobrados por outro colega", por exemplo. Um sistema facilitado pela burocracia: obrigando a preencher uma ficha em triplicado, manda-se o doente embora sem lhe entregar a sua parte, evitando o controlo de quem foi tratado. Depois, continua, ao utente, cobra-se uma quantia pelo aluguer do espaço, passado em recibo à parte, em nome da clínica e não do médico convencionado. Jorge Crespo garante que 90% dos médicos dentistas recorrem a estas compensações. E que a ADSE "não fiscaliza".
18 de Novembro de 2004