Carlos Pereira, de 46 anos, doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, médico dentista, professor na Escola Superior de Saúde de Viseu (ESSV), coordenou um estudo sobre a saúde oral dos jovens da região Centro. Natural de Sátão, começou a sua vida profissional pela enfermagem, mas a paixão pela saúde oral foi mais forte, tornando-se o primeiro doutorado na ESSV. Escolheu Viseu para viver, mas optou pela vila natal, para abrir um consultório. Já sabia que as bocas da maioria dos portugueses é um problema grave, mas os resultados do estudo que coordenou ainda o conseguiram surpreender: “É espantoso que 20 por cento dos adolescentes não fazem ideia do que é o fio dentário”.
-Como surge a oportunidade de realizar este estudo com os jovens entre os 12 e os 18 anos da região Centro?
-A ideia de desenvolver este estudo surgiu da inexistência de evidências, de provas, de dados concretos sobre este fenómeno que estudámos. Não tínhamos dados relativos à população e, no caso concreto dos adolescentes, sobre a forma como estes realizavam a sua higiene oral, o número de vezes que visitavam o médico dentista e, por desconhecermos, foi essa a motivação mais importante.
-A falta de dados concretos era uma barreira?
-É impossível planear cuidados, planear uma assistência fundamentada se não conhecermos os dados mais elementares desse fenómeno, sobre o qual podemos intervir.
-Partiram com a ideia de que a situação não era boa e é preciso concretizar no terreno?-Tínhamos a noção que o cenário não era animador. Isto para dizer que o cenário não nos surpreendeu. Quem faz clínica depara-se todos os dias com esta questão da higiene oral realizada de uma maneira menos correcta. Daí até planeámos o estudo e realizá-lo foi um passo.
-O estudo abrangeu os seis distritos da região Centro (Aveiro, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Coimbra e Leiria)?
-Fizemos uma abordagem maioritariamente no distrito de Viseu e, depois realizámos estudos em outros distritos.
-Não será abusivo dizer que é um estudo da região Centro?-Não. Todos os distritos da região Centro foram visitados. Se me perguntar: Foi feito de modo equitativo? Não é verdade, a região onde incidimos mais foi o distrito de Viseu, onde incluímos todas as escolas públicas do 2º e 3º Ciclos e secundário, excepto o 1º Ciclo e a Pré-escola.
-O estudo foi feito em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de Medicina do Porto. Porquê esta parceria?-Eu fiz a minha formação pós-graduada, nomeadamente o mestrado e o doutoramento na Faculdade de Medicina do Porto. Daí ficaram amizades, ficaram contactos de investigação, o meu gosto pela investigação surgiu aquando a minha passagem pelo Porto. Um outro aspecto é que um dos tópicos apresentado [no estudo], a questão dos comportamentos da saúde oral em adolescentes da região Centro, foi estudado pelo dr. Nélio Veiga, meu aluno de mestrado e que fez o mestrado em Saúde Pública na Faculdade de Medicina do Porto. Esta espécie de dois em um faz da universidade também legitimamente co-autora deste estudo.
-Essa ligação privilegiada abre caminho a outros estudos na Escola Superior de Saúde de Viseu?-Este estudo não é o primeiro feito em parceria com a Faculdade de Medicina do Porto. Fizemos um trabalho sobre a prevalência da obesidade no distrito de Viseu, também em parceria com a Faculdade. Também há uns anos atrás, e estou-me a lembrar de trabalhos com maior visibilidade, realizámos um outro trabalho sobre comportamentos sexuais em adolescentes.
-Há outros em desenvolvimento?-Há outros na forja. Um com a Escola de Saúde da Universidade de Aveiro que estamos a realizar, mas ainda é precoce levantar o véu.
-Este tipo de trabalhos é uma constante na Escola Superior de Saúde de Viseu?-Sim. Na investigação que os nossos docentes têm que realizar no âmbito da sua formação pós-graduada, tem havido o cuidado por parte dos seus orientadores, para que essa investigação possa ser diferente daquela que é feita com o propósito de defender uma tese.
-Diferente em que aspecto?-A investigação só faz sentido se se transformar em conhecimento, e conhecimento é estar ao serviço do cidadão, de todos quantos precisam de consultar a investigação científica, consultar as provas para prestar cuidados. Penso que houve da nossa parte o cuidado de fazer investigação que possa dar resposta concreta a questões concretas das populações.
-Quais são os resultados genéricos do estudo que nos trouxe a esta conversa?-Em termos de conclusão podemos dizer que um em cada cinco adolescentes não escova os dentes. Estamos a falar de 20 por cento.
-Isso é mau ou muito mau?-É péssimo. O desejável era que desde tenra idade seja incutido nas crianças hábitos de higiene oral, que passam por escovar os dentes, escovar a língua, escovar as gengivas, no fundo, ter uma higiene cuidada com a boca e dentes. Depois, dizer que só um quatro dos adolescentes (25 por cento) escova os dentes duas ou mais vezes por dia, admitindo que a escovagem duas vezes por dia é o mínimo. Outra nota que importa reter é que, se escovarmos os dentes duas ou mais vezes por dia, a utilização do fio dentário pelo menos uma vez por dia, e a visita regular ao médico dentista, duas vezes por ano, chegamos à conclusão que menos de dois por cento dos nossos adolescentes têm hábitos de saúde oral correctos. Uma outra nota, para dizer que é espantoso que 20 por cento dos adolescentes não fazem ideia do que é o fio dentário.
-O que mais o surpreendeu?-Esta questão do fio dentário.
-Já encontrou razões para isso?-Provavelmente nunca ouviram falar, e admito que não acontecerá em todas as consultas esse ensinamento. Muitas vezes, há questões primárias, mais preocupantes e mais emergentes. Se a pessoa vai ao médico porque lhe dói o dente, parece oportuno estar a falar de fio dentário?
-Os resultados foram piores do que os esperados?-Acho que sim. Estamos a falar de jovens entre os 12 e os 18 anos e esperava que estivessem mais informados. Ainda me falta uma quinta nota [das conclusões do estudo] para dizer que os jovens provenientes de classes sociais menos escolarizadas – avaliada tendo por base a escolaridade que o pai ou a mãe tinham – eram aqueles que tinham pior higiene oral, que visitavam menos o médico dentista, era onde estava a maior prevalência de adolescentes que não conheciam o fim dentário.
-Também temos que juntar aqui uma questão financeira dos pais?-Essa é outra questão. Estas questões da saúde agregam, ou seja, não se tem conhecimento, é-se pobre, não se vai aos cuidados de saúde, não se tem informação sobre onde recorrer, etc, etc. Tudo isto é uma espécie de bola de neve quando se fala de escolaridade.
-A saúde oral é também um problema social?-Se vos perguntar qual é a doença mais frequente na sociedade portuguesa, seguramente vão-me dizer que é o enfarte miocárdio, o cancro ou o AVC. Mas se formos ver os números frios como eles devem ser vistos, a doença mais prevalente na sociedade portuguesa é a cárie dentária. Esquecemo-nos que a cárie dentária é uma doença com uma componente infecciosa grande. E se fizer a questão: Quem é que alguma vez teve cárie dentária? Provavelmente 99,9 por cento ou têm ou já tiveram.
-Como é que se faz uma boa escovagem da boca?-Numa das minhas passagens pelas Pousadas de juventude, um dia partilhei um espaço com um norueguês e, na higiene matinal, quando me dirigi aos balneários deparei que o indivíduo estava a tratar da higiene oral. Eu cheguei, fiz a minha higiene oral, desfiz a barba, tomei banho e, quando regressei á base, ele continuava com a sua higiene oral. Isto espelha bem a importância que não damos às questões da higiene oral e outros dão. Depois das refeições, seria sempre conveniente fazer a higiene oral, de manhã e à noite é o mínimo exigível. Utilizar uma escova adequada que deve ser substituída de três em três meses.
-O que é uma escova adequada?-Deve ser uma escova macia, é um princípio.
-O mercado tem boas escovas?-Sim, sim. Quando me perguntam se devem usar escova manual ou eléctrica, a resposta que dou é: usem bem. O médico deve indicar a escova adequada em cada caso.
-E as pastas dentífricas?-As marcas [do mercado], são marcas com a quantidade de flúor preconizada pela Organização Mundial de Saúde.
-Os estudo aponta para que os rapazes sejam mais desleixados que as raparigas. Há alguma explicação para isso?-Não tenho explicação.
-Isto devia ser alvo de um estudo individualizado?-Quando se faz investigação, seja em que área for, sempre que no mesmo estudo analisamos homens e mulheres, uma boa prática de investigação manda que separemos homens para um lado e mulheres para outro, sem nenhum tipo de preconceito ou de interpretações. Ser homem é ser diferente de mulher e a explicação dos problemas tem uma relação com o sexo.
-Quando é que os jovens vão ao dentista?-Os que pertencem a classes económicas mais favorecidas procuram o médico dentista com alguma regularidade e de uma forma mais rotineira.
-E cedo?-Sim. O Cheque Dentista abriu algumas portas. Temos crianças com quatro/cinco anos ou até mais precocemente. A primeira visita devia ser o mais cedo possível para que a criança brincasse com o médico dentista e percebesse que este fantasma tem tendência a desaparecer.
-O programa Cheque Dentista está a funcionar? Já há algumas críticas.-Acredito que não esteja a funcionar por feição e eu próprio já disse que não chega a todas as crianças, mas o pouco que se faça de bom é sempre bem vindo. A mensagem vai passando.
-O que é que se pode fazer mais pela boca dos jovens?-Eu penso que está tão mal que o pouco que se possa fazer é bem vindo. Tenho a certeza que uma escova e uma pasta de dentes custam uma décima parte do que é necessário gastar na hora de fazer uma reabilitação oral.
-Está a falar da falha da prevenção?-Naturalmente. Na esmagadora maioria dos casos, se o doente chega a esse estado é porque a prevenção primária falhou.
-O problema não é só dos jovens, os idosos é uma faixa etária complicada. Concorda?-Há uma fatia dos nossos idosos que chamar saúde oral [ao que fazem] é um atentado. Que saúde terá alguém que tem dores, que psicologicamente e socialmente se sente afectado? Isto é mais importante do que possamos pensar.
-Tratar os dentes em Portugal é muito caro. Isso é também um entrave à saúde oral dos portugueses?-Temos que ser realistas, há muitas pessoas que não conseguem pagar uma consulta.
-Aí devia entrar o Serviço Nacional de Saúde.-Não acredito que com os PEC’s isso possa vir a acontecer, mas facilitava o acesso a essas classes mais desfavorecidas que não tem como pagar. Devo confessar que deparamos com pessoas que têm dificuldade em pagar a simples consulta de 40 euros ou 50 euros.
-Há dentistas a mais em Portugal?-Eu costumo dizer aos meus alunos que este mundo hoje, como eu o vejo, deve ser entendido numa lógica de aldeia global de que tanto se fala. Temos que rodar. As pessoas têm que ter vontade de sair, de dar o salto. Visto por aí, há oportunidades de sucesso em vários locais da Europa e do mundo. Se começam a ser muitos para nós? Se calhar sim, mas há outras áreas onde começa a haver mais oferta e menos procura.
-Qual é a relação da saúde da boca com a nossa saúde?-Já falámos da obesidade, da má nutrição… os dentes não servem só para mastigar, servem para várias coisas, até para sorrir. Quem não tem dentes com os quais consiga fazer uma mastigação eficaz, naturalmente que isso vai-se repercutir-se em termos de digestão, os nutrientes não são absorvidos da forma mais eficaz e daí para baixo tudo pode acontecer: problemas gastrointestinais, digestivos, de mal absorção de alimentos, má nutrição. Depois, se pensarmos que uma boca mal cuidada é uma boca onde existem microrganismos das mais variadas espécies, esses microrganismos por si só podem ter relação com um conjunto de doenças, ao nível do coração, dos rins, do reumatismo articulado agudo, sinusite e todas as outras doenças que hoje em dia se sabe que têm uma relação directa. Acontece com alguma frequência aparecerem nos consultórios doentes com dores horríveis na face, na cabeça, dores de ouvidos, zumbidos, etc. E é frequente aparecerem, depois de serem consultados no otorrino, de serem vistos por um neurologista, por um psiquiatra e por colegas de outras especialidades. É impossível ter saúde, vista como bem-estar físico, mental e social, se não houver uma saúde oral adequada.
Jornal do Centro / Região de Viseu