domingo, 24 de junho de 2012

580. Ameaça à saúde em 50 falsas clínicas dentárias

Em Portugal, mais de meia centena de laboratórios de prótese dentária prestam serviços de forma ilegal. O JN visitou alguns e encontrou um perigoso cenário de ameaça à saúde pública e ao direito à imagem.
Utensílios médicos e moldes de próteses com ferrugem, seringas guardadas em garrafas de Coca-Cola, técnicos a manusearem a cavidade oral sem luvas e com objectos não esterilizados, empregadas de limpeza a auxiliar “dentistas”, “consultórios” a funcionar em moradias privadas, instalações velhas e com sanitários decrépitos, lixo por separar, câmaras de vídeo (não autorizadas pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, confirmou o JN) à porta e na sala de espera dos “consultórios”, técnicos de prótese dentária a fazer biscates em consultórios de dentistas e dentistas a extrair dentes em casas particulares, protésicos que anestesiam, arrancam dentes e removem implantes. Nas duas semanas que percorremos o país, fazendo-nos passar por cliente, testemunhamos situações tão insólitas quanto impensáveis para o século XXI.
O mais inacreditável é que quase todos os laboratórios que visitamos continuam a trabalhar normalmente, sem temer fiscalizações, não obstante a denúncia feita e divulgada pela Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), em Maio, à Inspecção – Geral das Actividades em Saúde, Administração Central do Sistema de Saúde, Infarmed e Ministério da Saúde, entidades a quem enviou uma vasta lista de laboratórios que prestam cuidados de saúde directamente aos utentes, o que não é permitido por Lei.
Em espinho, há um laboratório de prótese dentária que, sem receios, afixa, na rua, um placard com o horário de atendimento ao público e até anuncia serviço de urgência, sabendo que a intervenção na cavidade oral é da exclusiva competência do dentista ou estomatologista e, em alguns casos, do odontologista.
O repórter do JN entrou nas referidas instalações, aguardando na sala de espera pela saída do outro “doente”. Quando chegou a sua vez, contou à “médica” a sua história clínica: “Tenho um implante que quero retirar e substituir por uma prótese. Fazem esse serviço? O que propõem e quanto cobram?”.
“Para remover o implante, sugerimos um dentista da nossa confiança. Tudo o resto nos fazemos. Cobramos 250 euros por cada dente”, respondeu, muito naturalmente, a “doutora”.
Antes disso, já o JN havia visitado outro laboratório, no edifício contíguo. Na sala de espera, comum a outros serviços prestados no mesmo piso, perguntámos se era ali que arrancavam dentes e colocavam próteses. Uma idosa apressou-se a responder, sem rodeios: “É aqui, sim, mas este é fraquinho. Cobra barato, mas não é tão bom quanto outro no prédio aqui ao lado. Esse leva mais dinheiro, mas tem mais qualidade e fama”.
Ainda em Espinho, visitamos um outro protésico, a quem contamos a mesma história clínica. O técnico, que nos atendeu na sala de espera, sem luvas, nem de um minuto precisou para fazer o diagnóstico: “Vá a um dentista retirar o implante e venha cá que fazemos e colocamos a prótese”.
Em Castro Daire, o laboratório que visitamos é uma barafunda. O técnico assumiu que, não fosse faltar-lhe ali “ferramenta”, e até extracção de implantes faria. Para esse efeito, sugeriu, como quase todos os protésicos, a ida a um “médico amigo” – de imediato sacou de um maço de cartões de visita, que tinha logo ali à mão, com o nome (curiosamente, ambos com o mesmo sobrenome) e contacto do dentista – e esclareceu: “Vai lá que ele extrai o implante e depois tratamos aqui da prótese. Ele é rapaz novo, mas já começa a ter experiência. Eu próprio também vou lá algumas vezes ajudar”. Trezentos euros por uma prótese esquelética e 1 200 euros por cinco dentes numa prótese fixa foi quanto nos pediram.
Em Viseu, num velho edifício, algo assustador, a assistente do protésico, na ausência deste, garante que o serviço ali prestado aos doentes “é de excelente qualidade”, seja prótese esquelética, acrílica, fixa ou ortodontia. “Sabe, o senhor MC tem muita experiência a lidar com a boca dos doentes”, explica.
Em Valongo, o “consultório” visitado funciona numa modesta casa de habitação, com videovigilância à porta. A assistente do “dentista” é a empregada de limpeza, que muito diligente, explica ao JN que “nunca nenhum doente” ali atendido – “e têm sido muitos” garante – “teve razão de queixa”. “Se precisar de extrair algum dente, vem aqui a casa, todas as quartas-feiras à tarde, um dentista, que lhe pode fazer esse serviço. Se preferir ser atendido no Porto, pelo senhor FS, ele também tem lá um consultório”, esclareceu a “auxiliar de acção médica”, facultando um cartão com as moradas médicas.
Na Marinha Grande, o centro integrado de saúde oral – assim anunciado à porta de uma habitação – conta com um técnico bastante conhecido na terra, que tem também consultório em Leiria. Entrámos no seu consultório, sentámo-nos na cadeira de dentista e o protésico viu a boca do repórter do JN, fez o diagnóstico, apontou para uma tabela de preços de próteses e deu uma boa notícia: “Se quiser que lhe retire o implante que tem na boca, para lhe aplicar uma prótese feita por mim, faço-o, sem problemas e sem custos. Quanto à prótese, se forem três dentes, cobro 16º euros (acrílica) ou 340 euros (esquelética)”.
Em Leiria, o “consultório” visitado pelo JN, cuja sala de espera tem videovigilância – “uma situação ilegal”, garante a CNPD –, assume aplicar “todo o tipo de próteses e aparelhos fixos e removíveis”. “Só não fazemos extracções de dentes e cirurgias. Aí, recomendamos um dentista aqui ao fundo da rua”, disse uma técnica, numa conversa rápida, já que, lá dentro, alguém aguardava por si. E quando o repórter do JN deixava as instalações, quatro idosos entravam no prédio e questionavam-nos sobre a localização do “consultório do dentista, que mete próteses”.
O mais luxuoso dos laboratórios visitados pelo JN, a funcionar num moderno e imponente edifício de serviços, fica localizado em Leiria, ao lado de um dentista. Na sala de espera, um doente confidencia ao repórter que foi ali mandado por um médico de um hospital. “Fiz uma operação e partiram-me a placa. Assumiram que me pagavam uma nova e disseram para vir aqui, que depois eles faziam contas com este laboratório”, disse. Ao que o jornalista pergunta: “Mas vem só fazer o molde ou é aqui que também lhe aplicam e ajeitam a placa?”. Resposta: “Não, os técnicos, aqui, fazem tudo. Depois, o hospital paga-lhes”. De facto, o repórter, minutos depois, acabou por confirmar isso mesmo, lá dentro, sentado numa cadeira de dentista. Na presença de um protésico, que o observou e prometeu aplicar uma prótese esquelética, com três dentes, por 380 euros, contando já com a necessária remoção prévia de um implante. “Depois ainda lhe posso fazer uma atenção no preço”, prometeu.
Ali, como em tantos outros laboratórios visitados pelo JN, os cartões de visita têm um espaço para assinalar o dia e a hora das consultas. “É mais uma prova que atendem doentes, o que é ilegal”, diz o bastonário da OMD que não encontra explicação para o facto de alguns laboratórios – em Espinho, por exemplo – anunciarem acordos com subsistemas de saúde.
Em Matosinhos, o único local visitado pelo JN cujos funcionários tiveram um discurso mais defensivo – um vistoso sistema de videovigilância à porta, de resto, deixa logo transparecer um certo receio com visitas indesejadas –, o serviço, também ilegal, mas que toda a vizinhança sabe ali existir, prende-se com a aplicação de aparelhos de correcção dentária a crianças. Quando questionamos sobre se aplicam próteses, remeteram, de pronto, para um dentista de confiança, no Porto, e, como em quase todos os outros laboratórios visitados, tinham logo ali à mão um cartão para oferecer.
“Se detectarmos que há algum tipo de relação ilegal ou reprovável entre dentistas e técnicos de próteses, tomaremos todas as medidas legais para denunciar e punir os infractores”, assegurou, ao JN, Orlando Monteiro da Silva, que, em ultima instancia, ameaça entregar o caso ao Ministério Público.
JN – É legal um técnico contactar directamente com clientes de próteses?
Orlando Monteiro da Silva – Os protésicos são responsáveis apenas pelo fabrico dos dispositivos médicos que são prescritos pelos médicos dentistas. O contacto directo com o doente ou a colocação do dispositivo na cavidade oral não podem acontecer.
JN – Quais os crimes em causa?
Orlando Monteiro da Silva – Ofensas à integridade física, usurpação de funções, burla, entre outros.
JN – Do que vimos nas “clínicas ilegais” visitadas, os preços são mais baixos do que nas clínicas legais, com dentistas. Este aparente aumento da prestação ilegal de cuidados de saúde é resultado da crise económica?
Orlando Monteiro da Silva – Não é uma lógica que possa ser estabelecida. Mas pensar-se que fica mais barato é um engano. Se alguém não pode praticar atos de saúde, porque não os sabe fazer como é suposto para uma prática segura, isto não fica mais barato. Fica bem mais caro. As pessoas que sofrem com os resultados menos felizes percebem quão mais caro resulta reparar lesões e danos eventuais. Portugal não pode ser o reino dos “arrancas”.
Transcrição do artigo “Mais de 50clínicas prestam serviços ilegais”, da autoria do jornalista Miguel Gonçalves, publicado na edição escrita do Jornal de Notícias do dia 24 de Junho de 2012 
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As declarações do presidente da OMD são pouco clarificadoras para a resolução do problema. Afinal de contas quem é que forma os protésicos? Quem foram os instrutores e as instituições nacionais que formaram técnicos que causam ofensas à integridade física, usurpam funções, burlas, etc.? Aí sim, senhor presidente da OMD, deveria ter identificado cada um desses instrutores e instituições...

domingo, 17 de junho de 2012

579. Estudo a que alunos da Casa Pia foram sujeitos cumpriu todas as "leis e convenções nacionais e internacionais"


A Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa (FMDUL) que levou a cabo um estudo de tratamento dentário a crianças da Casa Pia, entre 1997 e 2006, defende que o mesmo "respeitou todas as leis, regulamentos e convenções, nacionais e internacionais, relacionadas com os aspectos éticos e de protecção de participantes humanos".
As declarações, feitas através de comunicado à imprensa, surgem um dia depois de o secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social ter solicitado ao Procurador-Geral da República (PGR) que apure se existiu “algum ilícito criminal” na execução de um protocolo que levou ao tratamento dentário de 507 crianças da Casa Pia de Lisboa.
Na participação, o governante refere que o estudo em causa foi objecto de uma reportagem pela RTP, no passado dia 28 de Maio, denominada As Cobaias e que nela é referido que as substâncias utilizadas nos tratamentos eram “muito tóxicas”. No entanto, o "Casa Pia Study, como foi chamado, foinoticiado pelo PÚBLICO a 14 de Novembro de 2003. Diz respeito a um estudo norte-americano sobre o uso de de amálgamas de mercúrio, os vulgares "chumbos", nos tratamentos dentários com 500 crianças da Casa Pia. Desde o primeiro dia, houve polémica – que se reacendeu agora, graças a uma reportagem emitida pela RTP1 no final de Maio.
Como o PÚBLICO noticiou há nove anos, num trabalho que deu direito a manchete e que se estendia por quatro páginas no interior da edição de 14 de Novembro de 2003, não havia na altura ensaio nacional que pudesse gabar-se de ter um orçamento tão avultado – nove milhões de euros. O "Casa Pia Study" era, à data do seu lançamento, o mais caro projecto do National Institute of Dental Research (NIDCR), um dos 27 centros de pesquisa dos institutos nacionais de saúde norte-americanos.
O estudo The Casa Pia Study of the Health Effects of Dental Amalgam in Children foi feito em parceria entre a FMDUL e a Universidade de Washington, Seattle. Em simultâneo, nos EUA decorreu um estudo paralelo sob a responsabilidade do New England Research Institute. Todos os materiais utilizados, incluindo o amálgama dentário, consistiram em "materiais comerciais devidamente certificados" e as técnicas utilizadas nas restaurações dos dentes "respeitaram os protocolos padronizados".
A utilização do amálgama dentário "era e continua a ser advogada por várias entidades internacionais". A saber: a Organização Mundial de Saúde, a Federação Dentária Internacional, a Food and Drug Administration (a organização norte-americana equivalente ao Infarmed português), o Conselho Europeu de Dentistas e a Comissão Europeia.
Além de ter sido pedido consentimento aos alunos que participaram, A FMDUL pediu ainda autorização aos pais e responsáveis legais e os dois provedores da Casa Pia, Luís Rebelo e Catalina Pestana, deram também autorização.
"Ao contrário do que é afirmado na reportagem, não foram restaurados 16 dentes por aluno, mas 16 superfícies. O número médio de dentes restaurados por aluno foi entre cinco e seis", diz o comunicado. A segurança dos alunos e os resultados intercalares foram "sujeitos a monitorização permanente por parte de uma comissão independente formada por um grupo de peritos nas várias áreas de interesse do estudo. Esta comissão tinha a responsabilidade e o poder de interromper o estudo".
Entre 2005 e 2007 foi feita uma auditoria aos aspectos éticos e de protecção dos participantes pelo Office for Human Research Protections, um órgão do governo federal norte-americano, por causa de uma queixa que incluia aspectos abordados na reportagem. Essa auditoria concluiu que as queixas eram "improcedentes" e o processo foi arquivado "definitivamente".
PÚBLICO
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Independentemente dos ilícitos que possam ter ocorrido com a experiência mencionada na notícia, é extremamente lamentável e revela completa falta de ética e imoralidade ver um o secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social estar preocupado com uma situação ocorrida no passado e não fazer uma exaustiva auditoria aos actuais programas de saúde oral que tratam menos de 10 % das necessidades de saúde oral e dentária das crianças e jovens portugueses, descriminando a esmagadora maioria a quem deveria ser dirigido o programa.
A demagogia e a vergonha devem ter limites para determinados políticos.

domingo, 10 de junho de 2012

578. SAÚDE ORAL EM PORTUGAL: Experiências médicas em crianças da Casa Pia


Experiências médicas em 

crianças da Casa Pia