Em Portugal, mais de meia centena
de laboratórios de prótese dentária prestam serviços de forma ilegal. O JN
visitou alguns e encontrou um perigoso cenário de ameaça à saúde pública e ao
direito à imagem.
Utensílios médicos e moldes de
próteses com ferrugem, seringas guardadas em garrafas de Coca-Cola, técnicos a
manusearem a cavidade oral sem luvas e com objectos não esterilizados,
empregadas de limpeza a auxiliar “dentistas”, “consultórios” a funcionar em
moradias privadas, instalações velhas e com sanitários decrépitos, lixo por
separar, câmaras de vídeo (não autorizadas pela Comissão Nacional de Protecção
de Dados, confirmou o JN) à porta e na sala de espera dos “consultórios”,
técnicos de prótese dentária a fazer biscates em consultórios de dentistas e dentistas
a extrair dentes em casas particulares, protésicos que anestesiam, arrancam
dentes e removem implantes. Nas duas semanas que percorremos o país,
fazendo-nos passar por cliente, testemunhamos situações tão insólitas quanto
impensáveis para o século XXI.
O mais inacreditável é que quase
todos os laboratórios que visitamos continuam a trabalhar normalmente, sem
temer fiscalizações, não obstante a denúncia feita e divulgada pela Ordem dos
Médicos Dentistas (OMD), em Maio, à Inspecção – Geral das Actividades em Saúde,
Administração Central do Sistema de Saúde, Infarmed e Ministério da Saúde,
entidades a quem enviou uma vasta lista de laboratórios que prestam cuidados de
saúde directamente aos utentes, o que não é permitido por Lei.
Em espinho, há um laboratório de
prótese dentária que, sem receios, afixa, na rua, um placard com o horário de
atendimento ao público e até anuncia serviço de urgência, sabendo que a
intervenção na cavidade oral é da exclusiva competência do dentista ou
estomatologista e, em alguns casos, do odontologista.
O repórter do JN entrou nas
referidas instalações, aguardando na sala de espera pela saída do outro
“doente”. Quando chegou a sua vez, contou à “médica” a sua história clínica:
“Tenho um implante que quero retirar e substituir por uma prótese. Fazem esse
serviço? O que propõem e quanto cobram?”.
“Para remover o implante,
sugerimos um dentista da nossa confiança. Tudo o resto nos fazemos. Cobramos
250 euros por cada dente”, respondeu, muito naturalmente, a “doutora”.
Antes disso, já o JN havia
visitado outro laboratório, no edifício contíguo. Na sala de espera, comum a
outros serviços prestados no mesmo piso, perguntámos se era ali que arrancavam
dentes e colocavam próteses. Uma idosa apressou-se a responder, sem rodeios: “É
aqui, sim, mas este é fraquinho. Cobra barato, mas não é tão bom quanto outro
no prédio aqui ao lado. Esse leva mais dinheiro, mas tem mais qualidade e
fama”.
Ainda em Espinho, visitamos um
outro protésico, a quem contamos a mesma história clínica. O técnico, que nos
atendeu na sala de espera, sem luvas, nem de um minuto precisou para fazer o
diagnóstico: “Vá a um dentista retirar o implante e venha cá que fazemos e
colocamos a prótese”.
Em Castro Daire, o
laboratório que visitamos é uma barafunda. O técnico assumiu que, não fosse
faltar-lhe ali “ferramenta”, e até extracção de implantes faria. Para esse
efeito, sugeriu, como quase todos os protésicos, a ida a um “médico amigo” – de
imediato sacou de um maço de cartões de visita, que tinha logo ali à mão, com o
nome (curiosamente, ambos com o mesmo sobrenome) e contacto do dentista – e
esclareceu: “Vai lá que ele extrai o implante e depois tratamos aqui da
prótese. Ele é rapaz novo, mas já começa a ter experiência. Eu próprio também
vou lá algumas vezes ajudar”. Trezentos euros por uma prótese esquelética e 1
200 euros por cinco dentes numa prótese fixa foi quanto nos pediram.
Em Viseu, num velho edifício,
algo assustador, a assistente do protésico, na ausência deste, garante que o
serviço ali prestado aos doentes “é de excelente qualidade”, seja prótese
esquelética, acrílica, fixa ou ortodontia. “Sabe, o senhor MC tem muita
experiência a lidar com a boca dos doentes”, explica.
Em Valongo, o “consultório”
visitado funciona numa modesta casa de habitação, com videovigilância à porta.
A assistente do “dentista” é a empregada de limpeza, que muito diligente,
explica ao JN que “nunca nenhum doente” ali atendido – “e têm sido muitos”
garante – “teve razão de queixa”. “Se precisar de extrair algum dente, vem aqui
a casa, todas as quartas-feiras à tarde, um dentista, que lhe pode fazer esse
serviço. Se preferir ser atendido no Porto, pelo senhor FS, ele também tem lá
um consultório”, esclareceu a “auxiliar de acção médica”, facultando um cartão
com as moradas médicas.
Na Marinha Grande, o centro
integrado de saúde oral – assim anunciado à porta de uma habitação – conta com
um técnico bastante conhecido na terra, que tem também consultório em Leiria. Entrámos
no seu consultório, sentámo-nos na cadeira de dentista e o protésico viu a boca
do repórter do JN, fez o diagnóstico, apontou para uma tabela de preços de
próteses e deu uma boa notícia: “Se quiser que lhe retire o implante que tem na
boca, para lhe aplicar uma prótese feita por mim, faço-o, sem problemas e sem
custos. Quanto à prótese, se forem três dentes, cobro 16º euros (acrílica) ou
340 euros (esquelética)”.
Em Leiria, o “consultório”
visitado pelo JN, cuja sala de espera tem videovigilância – “uma situação
ilegal”, garante a CNPD –, assume aplicar “todo o tipo de próteses e aparelhos
fixos e removíveis”. “Só não fazemos extracções de dentes e cirurgias. Aí,
recomendamos um dentista aqui ao fundo da rua”, disse uma técnica, numa
conversa rápida, já que, lá dentro, alguém aguardava por si. E quando o
repórter do JN deixava as instalações, quatro idosos entravam no prédio e
questionavam-nos sobre a localização do “consultório do dentista, que mete
próteses”.
O mais luxuoso dos laboratórios
visitados pelo JN, a funcionar num moderno e imponente edifício de serviços,
fica localizado em Leiria, ao lado de um dentista. Na sala de espera, um doente
confidencia ao repórter que foi ali mandado por um médico de um hospital. “Fiz
uma operação e partiram-me a placa. Assumiram que me pagavam uma nova e
disseram para vir aqui, que depois eles faziam contas com este laboratório”,
disse. Ao que o jornalista pergunta: “Mas vem só fazer o molde ou é aqui que
também lhe aplicam e ajeitam a placa?”. Resposta: “Não, os técnicos, aqui,
fazem tudo. Depois, o hospital paga-lhes”. De facto, o repórter, minutos
depois, acabou por confirmar isso mesmo, lá dentro, sentado numa cadeira de
dentista. Na presença de um protésico, que o observou e prometeu aplicar uma
prótese esquelética, com três dentes, por 380 euros, contando já com a
necessária remoção prévia de um implante. “Depois ainda lhe posso fazer uma
atenção no preço”, prometeu.
Ali, como em tantos outros
laboratórios visitados pelo JN, os cartões de visita têm um espaço para
assinalar o dia e a hora das consultas. “É mais uma prova que atendem doentes,
o que é ilegal”, diz o bastonário da OMD que não encontra explicação para o
facto de alguns laboratórios – em Espinho, por exemplo – anunciarem acordos com
subsistemas de saúde.
Em Matosinhos, o único local
visitado pelo JN cujos funcionários tiveram um discurso mais defensivo – um
vistoso sistema de videovigilância à porta, de resto, deixa logo transparecer
um certo receio com visitas indesejadas –, o serviço, também ilegal, mas que
toda a vizinhança sabe ali existir, prende-se com a aplicação de aparelhos de
correcção dentária a crianças. Quando questionamos sobre se aplicam próteses,
remeteram, de pronto, para um dentista de confiança, no Porto, e, como em quase
todos os outros laboratórios visitados, tinham logo ali à mão um cartão para
oferecer.
“Se detectarmos que há algum tipo
de relação ilegal ou reprovável entre dentistas e técnicos de próteses,
tomaremos todas as medidas legais para denunciar e punir os infractores”, assegurou,
ao JN, Orlando Monteiro da Silva, que, em ultima instancia, ameaça entregar o
caso ao Ministério Público.
JN – É legal um técnico contactar
directamente com clientes de próteses?
Orlando Monteiro da Silva – Os
protésicos são responsáveis apenas pelo fabrico dos dispositivos médicos que
são prescritos pelos médicos dentistas. O contacto directo com o doente ou a
colocação do dispositivo na cavidade oral não podem acontecer.
JN – Quais os crimes em causa?
Orlando Monteiro da Silva –
Ofensas à integridade física, usurpação de funções, burla, entre outros.
JN – Do que vimos nas “clínicas
ilegais” visitadas, os preços são mais baixos do que nas clínicas legais, com
dentistas. Este aparente aumento da prestação ilegal de cuidados de saúde é
resultado da crise económica?
Orlando Monteiro da Silva – Não é
uma lógica que possa ser estabelecida. Mas pensar-se que fica mais barato é um
engano. Se alguém não pode praticar atos de saúde, porque não os sabe fazer
como é suposto para uma prática segura, isto não fica mais barato. Fica bem
mais caro. As pessoas que sofrem com os resultados menos felizes percebem quão
mais caro resulta reparar lesões e danos eventuais. Portugal não pode ser o
reino dos “arrancas”.
Transcrição do artigo “Mais de 50clínicas prestam serviços ilegais”, da autoria do jornalista Miguel Gonçalves, publicado na edição escrita do Jornal de Notícias do dia 24 de Junho de 2012
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As declarações do presidente da OMD são pouco clarificadoras para a
resolução do problema. Afinal de contas quem é que forma os protésicos?
Quem foram os instrutores e as instituições nacionais que formaram
técnicos que causam ofensas à integridade física, usurpam funções,
burlas, etc.? Aí sim, senhor presidente da OMD, deveria ter identificado
cada um desses instrutores e instituições...