No início da década de 1990, uma das categorias
de imigrantes brasileiros que ficou mais conhecida era a dos "dentistas em
Portugal". Munidos de seus diplomas, alguns dentistas brasileiros mudaram-se
para Portugal e passaram a exercer lá a sua profissão, um mercado mais
favorável. Na época, havia um acordo entre Portugal e Brasil que estabelecia a
equivalência direta entre todos os diplomas universitários do Brasil e de
Portugal. O fluxo migratório de dentistas brasileiros incomodou tanto os
dentistas portugueses que até a legislação foi alterada.
Foi sobre esse assunto que a revista Com
Ciência conversou com Igor José de Renó Machado, antropólogo, doutorando em
Ciências Sociais (IFCH/Unicamp) e pesquisador do
Centro de Estudos de Migrações
Internacionais (CEMI). A pesquisa de doutorado de Machado enfoca as
diferentes visões produzidas em Portugal sobre os brasileiros. Nessas visões,
Machado percebe uma associação entre o estereótipo da malandragem brasileira com
a figura dos dentistas imigrantes.
Com Ciência - Resuma para nós o que você
conhece do problema dos dentistas brasileiros em Portugal.
Igor Machado -
Por volta de 1991 a APMD, a Associação Profissional de Médicos Dentistas de
Portugal, começa a reclamar da presença de dentistas brasileiros ilegais em
Portugal. Esse órgão é o que regulamenta a profissão de médico dentista em
Portugal e, para exercer a profissão, é necessário ser associado. Portanto, é
ela quem concede a equivalência de diplomas. O caso é que as formações de
brasileiros e portugueses têm diferenças (que para portugueses são
significativas e para os brasileiros não). Diante do impasse diplomático, já que
o acordo Cultural Brasil-Portugal, de 7 de setembro de 1966, no seu artigo XIV,
regulamenta a equivalência de diplomas de profissionais brasileiros e
portugueses, o governo português baixa uma Portaria legalizando
administrativamente a prática de cirurgiões dentistas brasileiros em Portugal. A
Portaria 180-A/92, de junho de 1992 equiparava dentistas brasileiros a técnicos
e permitia-lhes o exercício da profissão e, como não eram médicos dentistas,
estavam vinculados ao ministério da saúde e não à APMD. A fragilidade dessa
portaria foi contestada judicialmente pela APDM em 16/04/1993, e todos os
cirurgiões dentistas brasileiros estavam sendo citados pessoalmente em processos
individuais. Em 1998, época do meu primeiro contato com os dirigentes da ABOP,
estava em trânsito uma discussão na assembléia para tentar resolver o caso dos
dentistas, enquanto o processo corria na justiça.
Com Ciência - A associação dos dentistas
brasileiros é relevante em Portugal?
Machado - A importância da
movimentação dos dentistas brasileiros é tanta que em 1994, os governos
brasileiro e português começaram negociações para resolver as "pendências
diplomáticas". Entre essas negociações, estava a intenção de renegociar o Acordo
Cultural Luso-Brasileiro, momento em que o governo brasileiro impôs a condição
do reconhecimento dos 416 dentistas brasileiros processados pela APMD. O
problema agravou-se devido ao fato da CLAD (Comitê de Ligação da Arte Dentária
da União Européia), órgão que regula a equivalência dos currículos de médico
dentista na Europa, ter ameaçado o governo português com uma queixa ao Tribunal
de Justiça Europeu, caso Portugal reconheça os dentistas brasileiros como
médicos dentistas. Por fim, em 1999 as associações brasileira de odontologia e
portuguesa de estomatologia (o equivalente a nossa "odontologia"), pressionadas
pelas respectivas diplomacias nacionais, conseguem chegar a um acordo que
resolveu o problemas destes dentistas, além de forçar a escrita de um novo
acordo cultural que passa a contemplar as situações como as dos dentistas
brasileiros. O novo tratado prevê que concessão de equivalência de diplomas é um
problema das respectivas associações profissionais dos dois países. Tendo
conquistado seus objetivos, a associação portuguesa admitiu que os dentistas
filiados à ABOP fossem integrados à ordem portuguesa, mediante um cronograma
suave de cursos de adaptação dos currículos.
Com Ciência - Qual a reação da mídia
portuguesa a essa disputa?
Machado - Parte da mídia portuguesa misturou
desinformação, sensacionalismo e preconceito e parte procurou informar
corretamente sobre os problemas. O fato é que ambas as associações estavam em
guerra declarada, o que implicava na divulgação de informações caluniosas dos
dois lados. Não vi nenhum trabalho sério que procurasse averiguar as afirmações
de ambas as partes (como conferir quais são, de fato, as diferenças de formação
entre brasileiros e dentistas). Mas as reportagens preconceituosas, que
relacionavam os dentistas a estereótipos sobre o brasileiro malandro,
espertalhão foram as que mais se destacaram, claro. Elas, por um lado,
sensibilizaram a mídia brasileira que deu destaque ao preconceito da cobertura
na mídia portuguesa e, por outro, rentabilizaram a posição dos dentistas, que
podiam dizer que o seu caso era um caso de defesa da imagem do Brasil, contra os
preconceitos, etc.
Com Ciência - Qual o posicionamento político
dos líderes dentistas durante o processo de luta pela equivalidação dos
diplomas? Dentro do universo dos brasileiros em Portugal a liderança política
dos dentistas era ou é significativa?
Machado - A posição era de
enfrentamento declarado. Enquanto a CBL (Casa do Brasil de Lisboa) buscava
articular um discurso de extensão de direitos devido a irmandade
luso-brasileira, como mostra o Gustavo Adolfo P. D. Santos [na tese de mestrado
"Relações Interétnicas em Lisboa: Imigrantes Brasileiros e Africanos no Contexto
da Lusofonia", também pesquisador do CEMI], a ABOP queria que a letra do tratado
de 1966 fosse cumprida, alegando ainda que Portugal devia aos brasileiros o bom
tratamento que o Estado brasileiro deu aos portugueses fugidos da revolução dos
cravos e a todos os imigrantes portugueses. O discurso da ABOP era tão duro que
o consulado brasileiro impediu a presença de dirigentes desta associação no
simpósio internacional sobre imigração brasileira em Lisboa, organizado pelo
CEMI e CBL. Para ter uma idéia, à época, ABOP que dizer Associação Brasileira de
Odontologia Secção Portugal, num profundo desprezo pela APMD. Claro que a
liderança destes dentistas é significativa, basta ver que sempre foram recebidos
pelos chefes de Estado brasileiro (Itamar e FHC), entretanto não é
representativa. Hoje em dia a grande maioria de brasileiros em Portugal é pobre
e com baixa formação escolar, e estes definitivamente não se sentem
representados pelos dentistas, vistos como verdadeiros magnatas.
Com Ciência - Quais as conseqüências da
resolução do caso dos dentistas para os demais brasileiros?
Machado -
Resumindo, a ABOP resolveu seu problema particular e ao mesmo tempo provocou um
novo tratado cultural que dificulta a vida de outros profissionais brasileiros
(mesmo de novos dentistas) que agora ficam completamente dependentes das ordens
portuguesas e não tem mais o amparo do antigo tratado cultural, que previa a
obrigatoriedade da concessão de equivalência. Este processo encerrou-se em julho
de 2000, quando o último módulo de cursos de adaptação foi terminado, juntamente
com uma solenidade que visava abafar os anos de crise e uma resolução que nada
tem de benéfica para a coletividade de brasileiros em Portugal, como tenta
afirmar a ABOP. Se antes a ABOP lutava pelo cumprimento da lei, que era benéfica
aos brasileiros, agora eles conseguiram resolver o próprio problema e abolir a
lei que era boa e permitiu a reivindicação de direitos. Ora, a partir de agora
os novos imigrantes qualificados devem resolver suas questões diretamente com as
respectivas associações portuguesas, que sempre tentaram defender o seu mercado,
como podemos imaginar. Para os brasileiros sem formação o único efeito dessa
briga toda foi o reforço de estereótipos por parte da mídia portuguesa, que
afeta negativamente a vida de todos.
Com Ciência - Qual a atual posição política
dos dentistas após a resolução dos problemas?
Machado - Se antes eram
combativos, agora são "mais realistas que o rei". Durante o congresso que
encerrou o problema com os últimos módulos de formação para a equivalência dos
diplomas, do qual participei, o que mais se ouvia era sobre a "irmandade"
luso-brasileira, sobre os eternos laços de amizade, sobre o estreitamento das
relações entre a associação brasileira de Odontologia e a portuguesa, etc. Até o
embaixador brasileiro estava lá e fez seu discurso na seção final de
encerramento, comemorando o fim das brigas entre os "irmãos"
transatlânticos.
IGOR MACHADO